quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

MINHA VIA-CRÚCIS MINHA




I

A cidade em estava de luto
Quando forçosamente nasci:
Domingo 20 de militarista maio.

II

Dos braços de uma mãe tiraram
Uma menina recém-nascida:
Mercedes Sosa canta Duerme negrito.

III

Tantas mortes na infância
Que o perder tornou-se presente:
Deslizar escuro e medo.

IV

Boneca de papel despedaçada na vida
De cinza ou de verde telhado de perda:
Não mais mar com sofreguidão.

V

A violência de estudar aos gritos
Quando proteção era luxo inalcançável: 
Quem me salvaria de ser indefeso na escola?

VI

Pobreza, fome e violência
Doem mais do que 
O abandono que nos espreita?

VII

Danúbia se foi aos quinze anos
E os sobreviventes não entenderam:
Quem explica a inexistência de alguém tão cedo?

VII

Crescer amedronta 
Com incertezas de habitação e caos:
Óculos tristes pelas ruas desertas.

IX

De verde se fazia tanto seu par de olhos
Que meu corpo virou ausência:
Canções do Roupa Nova para sempre em mim.

X

Coturno negro abrigando os pés
E tristeza ao abandonar a farda:
Madrugada-dor em meus feridos olhos.

XI

Sobreviver aos dezoito anos
Dá-nos fortaleza para outras dores:
Quem suporta angústia, muita a vida ganha.

XII

Universidade e acolhida
Quando o mundo ensina e abre portas:
Ingenuidade tem sempre consequências.

XIII

O Quinze me falou
Que a Literatura seria minha
Se eu a suportasse com seus espinhos.

XIV

Profissão árdua
Que ensina a refletir
Racionalmente sobre a vida.

XV

Os Cavaleiros do Zodíaco
Ressuscitavam tantas vezes
Que eu pensei que também seria assim comigo.

Émerson Cardoso
28/02/15






DIFERENÇA ENTRE "ESTAR" E "ESTÁ"

Querer a vida quando se está com os outros
Não é tão simples quanto o supõe alguns.

Um dia (quem sabe?), estar com outros
Não me seja um desafio lancinante ou aterrador.

Por enquanto, só posso dizer
Que cada gesto de convivência e riso
É um motivo para eu me isolar.

Émerson Cardoso
12/03/15


SONHOS ESCALAFOBÉTICOS

Urina espessa de cavalo e pedra.
Abelhas produzindo doçuras. 
Ventanias rasgando pálpebras.
Pontes de pedra quebrando-se. 

Relógios fabricam segundos. 
Resvalam à mesa resquícios de pão.
Três cadeiras riam sem alma.

Barulhos crescentes nas ruas.
Eletrodomésticos enregelam a sala.
O branco da parede dizia sandices. 
Ligeiras formigas escalam o mármore.

O sol se oculta e a janela cresce. 
Árvores imploram perdão.
Torneira pingando em pia obscura.
Moscas sedentas procuram abrigo.

Silêncios e gritos beijam-se acesos.
Roupas no varal dançam Chopin.
Cinzentas nuvens resguardam o choro.
Menino tristonho a brincar com papel.

O olhar procura paisagens. 
Desenhos perdidos no escuro.
Lábios beijados com nojo.
Amor que desama com ódio ferino.

De ódio se faz cenários de amor.
Roupagem em cárcere reclama passeios.
Amor desolado em pútrido sexo.
O corpo brincando na palma das mãos.

Oceanos de saliva lavam recônditos.
Colunas gregas quebradas com as unhas.
Repousante ofídio de bocarra medonha.
Um beijo se dá com sabor de desonra.

Émerson Cardoso
23/02/15